Discussão/ Reflexão: Gestão da heterogeneidade nas aulas de PLA: Caso prático

Gestão da heterogeneidade nas aulas de PLA: Caso prático

Gestão da heterogeneidade nas aulas de PLA: Caso prático

por Júlia Ferreira -
Número de respostas: 1

De uma maneira global, a professora Raquel Pereira adota práticas adequadas ao contexto, nomeadamente o preenchimento de uma ficha de identificação, que lhe permitiu perceber que teria de adotar estratégias de ensino diferenciado, como a criação de grupos flexíveis, por exemplo. No entanto, creio que a ficha sociolinguística teria de ser mais completa, especificamente no que diz respeito à identificação das necessidades comunicativas dos aprendentes. Creio que há dois aspetos que não foram considerados pela autora, a saber, a importância de os aprendentes serem coautores do seu próprio percurso de aprendizagem, selecionando temas e conteúdos que considerem essenciais no seu percurso. De facto, as necessidades linguísticas de alguém que trabalhe na construção civil ou de outro que trabalhe na área da restauração serão completamente diferentes, pelo que o estudo da língua deve refletir essas necessidades. Nas pp. 88 e ss., Raquel Pereira dá ênfase a “o que os alunos são” e a “o que os alunos sabem”, mas parece não ter comtemplado o que os alunos precisam. Desta forma, a estruturação do curso deveria ser por módulos não sequenciais e com o enfoque individualizado nos conteúdos. Por exemplo, quando se refere que uma aluna holandesa entrou a meio do curso, afirma-se que “foi possível à aprendente acompanhar o conteúdo que estava a ser lecionado no momento da sua chegada, apesar de haver ainda algumas limitações a nível da produção e compreensão oral e pronúncia, objetivos de ensino-aprendizagem que a aluna refere querer melhorar”. Ora, se o curso tivesse sido estruturado de forma modular, nem se colocaria a questão de a aluna conseguir ou não acompanhar o grupo.

Sem dúvida alguma que o professor precisa de se socorrer de material de base, como manuais escolares, mas tem de o adaptar de forma a que os conteúdos possam ser utilizados com elasticidade. Por outro lado, as necessidades de comunicação oral normalmente são superiores à comunicação escrita e a avaliação tem de refletir isso. É importante saber escrever, mas os processos de ensino-aprendizagem e de avaliação não devem dar demasiado pendor à produção escrita, sobretudo numa abordagem inicial. Deve haver um equilíbrio ou até uma valorização superior da compreensão e produção orais em relação às competências de compreensão e de produção escritas. Normalmente, uma criança aprende a sua língua nativa em contexto de imersão, sem problemas, com a cabeça fresca e só depois se dedica à alfabetização, durante vários anos. Mesmo que estejamos a lidar com adultos escolarizados, temos de reconhecer que, em muitos casos, há vulnerabilidades psicossociais que criam obstáculos ao ensino e o professor tem de os identificar para ultrapassar essas barreiras.

Creio que a partilha de produtos típicos ou a discussão de tópicos culturais terão sido as estratégias que terão resultado melhor e os trabalhos de casa talvez sejam os que resultaram pior. Muitos dos alunos não têm tempo para se dedicarem ao estudo autónomo em casa, ainda que isso também dependa muito do perfil de cada aluno e das tarefas. Se pedirmos ao aluno para fazer uma lista de cinco palavras novas que ouviu na rua ou no emprego e que as tente usar em contexto, é uma coisa, mas se apenas pedirmos para fazer uma lista de verbos, provavelmente o aluno sentir-se-á menos motivado. Há alunos que podem aderir a tarefas como fichas de trabalho dessa natureza e outros não, pelo que é fundamental o professor conhecer as barreiras psicossociais de cada aluno para adequar as tarefas dentro e fora da sala de aula.

Na minha perspetiva, uma abordagem mais lúdica e afetiva, com atividades que levem à interação pelo jogo, por exemplo, ou pelas artes poderia ser mais eficaz e de certa forma conduzir a maior nível de assiduidade. Porém, não podemos ignorar o facto de que muitas vezes os alunos são forçados a desistir dos cursos por razões alheias à sua própria vontade (caducidade de autorizações de residência, trabalho sazonal que exige deslocações, alteração de residência, entre outras) e que a instabilidade é norma nestes contextos de PLA. Assim, o professor pode questionar-se sobre os motivos da desistência e se a sua prática profissional terá contribuído para desistências, mas deve compreender que muitas das vezes os alunos simplesmente são forçados a abandonar os cursos contra a sua vontade.

No meu caso, gosto de pedir aos alunos para descreverem uma imagem sua que posteriormente apresentam aos colegas, por exemplo, em vez de ir aos manuais buscar fichas. Costumo modelar, partilhando uma imagem minha que descrevo, e depois muitos alunos partilham imagens de casamentos, festas de família ou férias, momentos felizes. A partilha sendo afetivamente relevante será também mais impactante e estimulante. Também uso muitas músicas, por exemplo, pois é um momento agradável e de partilha cultural. Até podemos fazer um festival de músicas do mundo em que cada aluno escolha um estilo musical do seu país e o apresente aos colegas ou um karaoke.

De igual forma, tenho diversos jogos de cartas e de tabuleiro que uso em momentos de interação de diversa natureza (por exemplo, o Supermatik para dislexia e disgrafia ajuda à discriminação fonológica). Outras alturas jogamos o bingo para praticar os números. Uma atividade que foi muito divertida, apesar de difícil, foi pôr os alunos a ouvir os números da lotaria do Natal. Depois pode-se fazer um role-play em que alguém tira os números, lendo-os, e depois outro indica o valor do prémio. Podemos ter outros alunos a fingirem que são os felizes contemplados dos três prémios e a partilharem o que pensam fazer com aquele dinheiro.  Por fim, não compreendi se no caso em apreço foram valorizadas as histórias e conhecimento prévio dos alunos, mas é fundamental fazê-lo.

Em resposta a 'Júlia Ferreira'

Re: Gestão da heterogeneidade nas aulas de PLA: Caso prático

por João Paulo Pereira -
Cara Júlia
Faz uma análise atenta e cuidada da intervenção pedagógica da professora Raquel Pereira. Ao nível do instrumento de diagnóstico, sugere ir mais além no sentido de perceber as necessidades comunicativas dos formandos (embora se procure perceber quais os interesses pessoais). Concordo que quanto maior for o conhecimento que tivermos dos formandos, melhor a resposta que lhes podemos dar, em termos de propostas de trabalho. Podemos assim mais facilmente propor tarefas diversificadas que sejam consideradas úteis e relevantes.
Questiona também, e muito bem, a opção de a professora dar o curso de forma sequencial. Não é por caso que os cursos de Português Língua de Acolhimento (PLA) estão estruturados em módulos. A estrutura modular permite gerir mais facilmente os casos de formandos que chegam mais tarde (ou com unidades temáticas já feitas).
Concordo também consigo em relação ao peso dado às várias competências, assim como à importância de partir das vivências dos formandos, tornando desta forma mais motivador o ensino e potenciando a aquisição. Também questiono, como faz, o uso do trabalho de casa, dada a dificuldade deste público em arranjar tempo para cumprir essa tarefa.
Gostei igualmente das estratégias que propõe, especialmente as de caráter lúdico. Há um artigo especificamente sobre a utilização do lúdico nas aulas de PLA que deixei no Moodle que aborda este aspeto do uso do lúdico no PLA.
Deixo-lhe, para complementar a sua excelente análise, a minha própria visão deste caso.
Enquanto professores de PLA, devemos ter em conta as idiossincrasias de uma realidade ligada à imigração que levanta questões acrescidas, dada a situação de vulnerabilidade (afetiva, social e económica) em que muitas vezes este tipo de público se encontra. O impacto pedagógico é significativo e exige respostas específicas, idealmente articuladas com outros profissionais (Grosso, 2021). Temos de lidar com um contexto educativo marcado concretamente por: uma heterogeneidade de trajetórias de aprendizagem e de perfis sociolinguísticos; baixa assiduidade dos aprendentes (ou atraso na chegada às aulas), devido a questões laborais ou dificuldades de transporte; condições de vulnerabilidade social e afetiva (Bottura e Gattolin, 2023).
É neste contexto que temos de analisar as respostas educativas de Raquel Pereira, no âmbito do curso ministrado a imigrantes no Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes (CNAIM) do Porto. A "heterogeneidade vincada", expressão utilizada pela própria, revela bem aquele que foi o grande desafio enfrentado. Perante esta realidade, a professora não teve dúvida em implementar uma pedagogia diferenciada.
Começo por assinalar o facto de ter sido preenchida uma ficha sociolinguística e ministrado um teste diagnóstico, que vieram corroborar a heterogeneidade da turma e que reforçaram a convicção da docente na necessidade de aplicação de uma pedagogia diferenciada. A docente parecia já ter esta decisão tomada antes de iniciar os trabalhos com a turma, pois inclui na ficha sociolinguística uma questão sobre os métodos preferidos de trabalho dos aprendentes e outra sobre interesses pessoais.
Quanto à utilização de estratégias que se inserem no âmbito da pedagogia diferenciada, a docente refere a constituição de grupos flexíveis, de acordo com o nível linguístico, da língua e dos ritmos de aprendizagem, a aprendizagem cooperativa ou a produção de materiais para aprendentes de línguas específicas.
Não há, no entanto, referência a instrumentos reguladores da aprendizagem, como o Plano Individual de Trabalho (PIT), que poderia apoiar de forma mais efetiva esta prática pedagógica. Refere a professora que, quando os aprendentes não apareciam durante um número significativo de aulas, lhes era pedido que resolvessem os exercícios mais importantes da unidade temática. Com um PIT, tanto os objetivos como as tarefas da unidade temática estariam claramente definidos, sabendo claramente o aprendente o que teria de fazer. Por outro lado, o PIT poderia contemplar também o estudo autónomo, outra parte essencial de diferenciação do ensino e das aprendizagens.
Quanto ao recurso ao trabalho de casa para efeitos de revisão e sistematização, assim como base para o registo das dificuldades individuais, não é garantido que tal estratégia resulte. Por um lado, sabemos da falta de tempo, por razões laborais, que os aprendentes têm para realizar as tarefas escolares fora da sala de aula. Por outro, trata-se de um público com uma assiduidade irregular.
Em termos de materiais didáticos, parece acertada a criação de materiais para aprendentes de línguas específicas e a adaptação de vários manuais. A criação de tópicos com base nos interesses dos aprendentes é outra das estratégias que se enquadra na pedagogia diferenciada e que merece ser destacada.
Finalmente, uma palavra para referir a preocupação da docente em promover o diálogo intercultural, de que é exemplo a partilha de produtos típicos do país de origem durante a aula.
Em suma, são vários os desafios na implementação da pedagogia diferenciada na aula de PLA. Se consultarmos o trabalho da docente, vemos quais foram essas dificuldades, que se prendem com a gestão da heterogeneidade na sala de aula (a falta de tempo para a concretização da unidade letiva, devido à divisão em grupos; o facto de certos alunos não reagirem bem a trabalhar em grupo; a sensação de dar mais atenção aos aprendentes que chegam de novo do que aos aprendentes fixos; etc.).